27 março 2011

Um bolo de batata cheio de recordações

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“Naquele tempo não havia a fartura de agora, filha…” E eu não tinha outro remédio senão agarrar a colher e tragar aquela sopa de cozido de grão com repolho que ela sempre fazia. O “não gosto” de pouco ou nada me servia e enquanto os olhos empurravam o repolho para um canto do prato, a mão procurava encher a colher com massa e grão e levá-la à boca, enquanto o avô João remoía entre dentes, “Oh minha Mãe de Deus que esta moça não sabe o que é bom!..”

Recordo-lhe bem o sabor adocicado que dissimulava o agre do repolho cozido. Era o segredo da minha avó. O mesmo golpe de mestria que aplicava nas ervilhas com ovos escalfados e adocicava o sabor dos pratos: “uma pitadinha de açúcar”. Um segredo que aprendera com a sua mãe, tal como outros que se foram transmitindo entre as mulheres da família, partilhados ao fogão, entre a preparação de uma refeição. Segredos que aprendi e segui. Até hoje. E que são, no fundo, os alicerces da minha cozinha.

Com a avó Natalinha descobri os sabores da sopa de cozido de grão com repolho, do coelho estufado, das favas sapatadas com carapau frito, da vitela estufada com cenoura, dos pimentos assados na grelha em dia de peixe grelhado no carvão. Do doce de tomate e dos bolinhos de chuva que à sua maneira moldava como argolinhas. Com o avô João aprendi a fazer a salada miúda com pão duro e bagos de uvas pretas e um bacalhau às camadas, tudo com os vegetais que plantava e colhia no seu pequeno pedaço de terra. Ele ensinou-me também o quão reconfortante e saboroso pode ser uma fatia de pão de véspera com manteiga, molhada numa chávena de leite com café acabado de fazer. Tão reconfortante como a fatia de pão com manteiga e açúcar que a bisavó Laurinda me preparava todas as tardes ao sol posto.

Há dias pedi à avó Natalinha que me sugerisse um prato que costumasse fazer por altura dos anos 60/70 mas a sua memória atraiçoou-a. Disse-me que não se lembrava. A minha mãe ainda a indagou sobre uns carapauzinhos fritos que ela lhe preparava quando regressava da escola mas, nem disso ela se recordava. Lembrei-me então de lhe pedir aquele caderninho verde de receitas que ela guardava na segunda gaveta do móvel da cozinha. Li-lhe algumas receitas em voz alta e vi-lhe os olhos pequeninos a sorrir. “Ah, esse é muito bom, fazia muitas vezes”. “Também deve estar aí a receita dos suspiros que fazia com as claras que ficavam dos bolos amarelos.”


E então não tive dúvidas quanto à receita para este desafio. Escolhi um bolo do seu caderno de receitas, o da primeira página. Tão simples de fazer, como se queria naqueles tempos, e tão rico em sabor quanto estas recordações. Preparei-o e coloquei-o no prato do serviço de jantar da bisavó Laurinda. Fotografei-o, provei-o e saboreei dezenas de recordações. Cortei ¼ do bolo e mandei-o para os meus avós com a certeza que cada fatia lhes contaria como foi (e continua a ser) enriquecedor o saber que partilharam (e partilham) comigo!

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Bolo de Batata
Receita retirada do caderno de receitas da avó Natalinha
Ingredientes: 300g de açúcar, 3 ovos, 150g de batata (cozida e desfeita em puré), 150g de farinha

(T): Bata o açúcar com as gemas. Junte a batata e depois a farinha. Por fim envolva as claras em castelo. Leve ao forno a 180º por cerca de 30 minutos.


Notas:
- Bati o açúcar com 2 gemas e 1 ovo inteiro porque achei a quantidade de açúcar demasiada para conseguir obter uma boa gemada apenas com as 3 gemas. À parte desta alteração segui a receita como descrita no caderno.

20 comentários:

  1. Meu amor, este também quero que me fique na memória, vou guardar para fazer porque sou batateira inveterada :)

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  2. Ah Margarida... fico sempre maravilhada com as tuas histórias de cozinha :))

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  3. Minha querida, que bom foi ler a tua história. Na minha casa também sempre se juntou uma pitadinha de açucar nas ervilhas, e eu faço tal e qual.
    Este bolo, tem a cara dos "outros tempos" simples, fofo e delicioso
    Um beijinho

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  4. Histórias lindas pela nossa blogosfera amiga atua também,bjokinhass

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  5. Acabo de conocer tu blog y me ha encantado, tienes unas recetas buenisimas!!! gracias por compartirlas con nosotros un beso y espero verte pronto

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  6. Margarida,
    Magnificas memórias as tuas.
    Nunca comi bolo de batata, mas pelo aspecto tenho a certeza que vou gostar. A minha avó fazia um bolo com fécula de batata que também era muito bom.
    Fiquei muito curiosa com a salada miúda com pão duro e bagos de uvas pretas da qual nunca ouvi falar mas que me aguçou o apetite :)
    Beijocas

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  7. Tem sido óptimo este desafio da Laranjinha pois temos ido ao baú da recordações buscar histórias e "novas" receitas, tão simples mas tão boas.

    Beijocas

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  8. Amiga que delicia ler estas tuas linhas... É como te digo adoro as tas introduções e as tuas histórias. Está é magnifica. Vou te contar um segredo, em ponho uma colher de açúcar em muitas receitas, normalmente em todas que levam tomate ara disfarçar o seu sabor acre.
    Beijinhos grandes e tive imensa pena em não te ver... estivemos tão perto =(

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  9. Esta história deixou-me com um sorriso. A doçura das avós é inexplicável. Da próxima vez que for à terrinha tenho a promessa de receber o caderninho de receitas da minha avó e tenho a sensação de que vai valer mais do que vários livros de chef's de renome juntos. A comida feita com amor é sempre diferente.

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  10. Belíssimas recordações.O tempo passa mas as memórias essas permanecem.

    Um bolo simples como era tipico nessa altura.

    Bjs

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  11. Que lindas memórias e de certeza que a tua avó adorou o bolo que lhe mandás-te e recordou com mais exatidão os momentos outrora passados. Um bolo "como o antigamente", cheio de sabor e estórias para contar!

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  12. Memórias belíssimas que, como num passo de magia, tiveram o condão de me fazer reviver o carinho da minha avó, o sabor reconfortante do pão com manteiga e açúcar... também ela me ensinou o segredo da pitada de açúcar nas favas e nas ervilhas...

    beijos

    PS - Tal como a Moira, também fiquei muito curiosa a respeito dessa salada miúda.

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  13. um bolo cheio de memórias. Vou levar a receita.
    bjs

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  14. Este bolo deve ficar muito fofo, sempre ouvi dizer que a batata dá um toque especial...
    beijinho

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  15. margarida com este passatempo tem se contado belas historias.
    este bolo parece-me tao bom, nao conhecia
    beijinhos e boa semana

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  16. Amiga querida, deliciei-me com a tua escrita. :)
    e garatote que tb me irei deliciar com o teu bolo. Teu e da Avó Natalina. :)
    Beijinhos

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  17. Margarida,
    muito obrigada pela tua partilha e participação. Adorei as tuas memórias, o livro de receitas, as fotos do bolo como se fossem antigas.

    Um beijinho.

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  18. Olá,

    gostei muito de ler estas memórias...recordei o pão com manteiga e açúcar que já estava um pouco esquecido, e que tantas vezes comi e que tanto adorava!... e aprendi coisas novas, como o segredo da pitada de açúcar nas favas e ervilhas, que tenho de confessar nunca ninguém mo havia contado!
    Quanto ao bolo, é sem dúvida uma receita a experimentar.
    Beijinhos

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  19. Linda história e o bolo de batata, tenho ideia de já ter feito um mas a receitinha sumiu, vou ficar com esta de olho :-)

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  20. O bolo tem excelente aspecto... mas o caderninho... oh que amor!!

    Beijinhos,
    Carlota

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